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NEGO FUGIDO

A manifestação do Nego Fugido é tecida pelas mãos e vozes dos moradores locais, em sua maioria pescadores e marisqueiras, cujas vidas são entrelaçadas com as águas da baía e as histórias de seus antepassados. Originado há mais de um século em Acupe, distrito de Sant Amaro, o Nego Fugido não é apenas uma encenação teatral, mas uma reconstrução do passado coletivo, destacando as revoltas de escravos nos engenhos de cana-de-açúcar que pontuaram a história do Recôncavo.

As apresentações acontecem durante os domingos do mês de julho, transformando as ruas de Acupe em um grande teatro a céu aberto. A manifestação conta com cerca de 40 figurantes, que são pessoas comuns da comunidade, incluindo pescadores, marisqueiras, comerciantes e donas de casa. A narrativa, rica em cultura e dramatização, retrata a perseguição, captura e libertação dos escravos fugidos, desenrolando-se com humor jocoso e refletindo as complexidades da luta pela liberdade, muitas vezes reinterpretada através da música e dos gestos dos brincantes.

 

ENRREDO, PERSONAGENS, CARACTERIZAÇÃO E ANCESTRALIDADE

Os personagens centrais da apresentação são os "negas", geralmente dramatizados por crianças, com os rostos pintados com uma mistura de óleo de comida e carvão moído, e a boca com um tom avermelhado feito de papel crepom, representando o sangue e a dor dos escravos. Essa aparência, muitas vezes, assusta aqueles que não estão acostumados com o espetáculo.

 

Os "Capitães do Mato", geralmente homens fortes, executam movimentos intensos da encenação. Eles usam saias feitas de palhas de folhas das bananeiras plantadas em cima de um antigo cemitério de escravizados. Esta prática, assim como a de pintar o rosto e a boca como as “Negas” também fazem, não é uma simples decoração, mas um profundo resgate da ancestralidade e da conexão espiritual com os antepassados. A palha de bananeira serve como um canal de comunicação simbólica entre o mundo dos vivos e dos mortos, uma tentativa de evocar e honrar aqueles que vieram antes, cujas histórias de resistência e sobrevivência permeiam as tradições de Acupe, além de servir como camuflagem durante a captura dos negros nas matas.

Há também a figura do soldado, que representa a proteção do Rei, simbolizando os senhores, donos dos engenhos e dos escravos, em um ato da peça. Os negros cobram as cartas de alforria ao Rei. A Princesa Isabel é representada pela figura da "Fada Madrinha", vestida de branco com um lenço branco amarrado no punho. Ela simboliza o equilíbrio entre a guerra e a paz dos negros e brancos. A apresentação ocorre ao som dos atabaques e de cantorias ritmadas com características africanas, criadas especialmente para essas encenações, cujas letras anunciam as cenas que virão.

Ao som dos atabaques, as "negas" dançam enquanto os caçadores cercam os fugitivos, girando em torno deles. Tiros de espingarda carregadas de espoletas são disparados; quando atingidos, as "negas" caem e são amarrados pelos caçadores, que os obrigam a percorrer as ruas do Acupe pedindo dinheiro para comprar suas cartas de alforria. Esta dramatização se repete nos primeiros domingos de julho.

O desfecho ocorre no último domingo do mês, com a prisão do Rei. Nesta última batalha, os caçadores se unem aos soldados para capturar o Rei, que é então obrigado a conceder a carta de alforria, lida pelo Capitão do Mato. Após a leitura, inicia-se uma grande festa comemorando a abolição da escravatura.

DESAFIOS

O Nego Fugido, uma manifestação cultural de Acupe, enfrenta sérias dificuldades devido à falta de valorização institucional. A ausência de apoio governamental resulta em desinteresse da população, especialmente entre os jovens, ameaçando a continuidade da tradição. A falta de recursos financeiros impede a realização e manutenção das apresentações, reduzindo a qualidade e a capacidade de atrair público. Para que o Nego Fugido prospere, é necessário um reconhecimento e apoio institucional efetivo. Valorizar esta manifestação cultural é essencial para preservar a identidade do Recôncavo Baiano para as futuras gerações.

 

CONCLUSÃO

Monilson Mony, morador de Acupe e doutor em Artes Cênicas, destaca em sua pesquisa e experiência que o Nego Fugido não é apenas uma memória do passado, mas um apelo ao presente e ao futuro. Ele argumenta que essa manifestação é um pedido de liberdade que ainda não se concretizou, tanto no passado histórico quanto nos desafios atuais da comunidade. O termo "teatro das aparições," cunhado por Monilson, descreve o evento como uma expressão emocional profunda, uma experiência ritualística que transcende ensaios, um transe que une o mundo dos vivos e dos mortos, conectando-se diretamente com os ancestrais através de símbolos como a palha de bananeira, que simbolicamente remete ao cemitério dos escravos, e a a maquiagem ritualística com carvão criando uma máscara que aproxima os participantes de suas raízes ancestrais.

Assim, o Nego Fugido de Acupe não é apenas uma representação teatral sazonal, mas um evento que encapsula a história viva e a luta contínua por liberdade e justiça em uma comunidade resiliente do Recôncavo Baiano. É um lembrete poderoso de que as tradições culturais não são estáticas, mas evoluem e resistem, moldadas pela história e pelas aspirações de um povo que busca manter viva sua identidade e suas raízes.

Durante o mês de julho, também podemos apreciar pelas ruas de Acupe os grupos de "Caretas de Acupe", "Mândus" e "Bombachas". Essas manifestações, apesar de não terem uma relação direta com a apresentação do Nego Fugido, oferecem um espetáculo à parte. O Nego Fugido, ausente dos livros oficiais de história do Brasil, é uma verdadeira aula de conhecimento e cultura de uma época crucial para o povo brasileiro e, especialmente, para a comunidade de Acupe.

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